Wednesday, October 18, 2006

Analogias

Muitas vezes, a sociedade ocidental - muito apegada a viver a vida e de alguma forma, ainda bem - aponta como loucas, as pessoas que cometem o suicídio como forma de atingir o martírio.
O martírio não é mais do que morrer por uma causa, seja ela de que natureza for.
O suicídio é o acto de, conscientemente, procurar a morte, ao invés de a esperar, vivendo.
Não será Jesus Cristo um mártir? Ou um símbolo de como o martírio resulta em termos de agregação a uma causa?
No filme o Paraíso, Agora!, há duas cenas que remetem para história da morte de Jesus Cristo: a primeira alusiva à última ceia, filmada num plano obviamente co-relacionado; a segunda, claramente uma reprodução do "beijo de Judas" no campo de oliveiras, neste caso, antes de ambos os bombistas passarem para o lado israelita e prosseguirem com a sua missão suicída. São dois momentos que, pela "souplesse" de como o filme está feito, até podem passar despercebidos. No entanto, não tenho dúvidas de que levantam algumas questões interessantes.

Sunday, October 15, 2006

Um passo mais à frente

A questão do aborto, mais uma vez em debate, é complexa ao nível do pensamento mas extremamente simples no que respeita à realidade prática.
Primeiro ponto, basilar como ponto de partida a esta discussão, é que ninguém é a favor da prática de um aborto.
Os defensores denominados de pró-vida defendem de uma forma geral o seguinte:
Passo a citar José António Saraiva " A atracção pela morte é um dos sinais da decadência. Portugal deveria estar neste momento , a discutir o quê? Seguramente, o modo de combater o envelhecimento da população. Um país velho é um país mais doente. Um país mais pessimista. Um país menos alegre. Um país menos produtivo. Um país menos viável - porque aquilo que paga as pensões dos idosos são dos que trabalham. Era esta, portanto, uma das questões que Portugal deveria estar a debater.
E a tentar resolver. Como? Obviamente, promovendo os nascimentos. Facilitando a vida às mães solteiras e às mães separadas. Incentivando as empresas a apoiar as empregadas com filhos, concedendo facilidades e criando infantários. Estabelecendo condições especiais para as famílias numerosas. Difundindo a ideia de que o país precisa de crianças - e que as crianças são uma fonte de alegria, energia e optimismo. Um sinal de saúde. em lugar disto, porém, discute-se o aborto. Discutem-se os casamentos de homossexuais (por natureza estéreis). Debate-se a eutanásia. Promove-se uma cultura da morte.
Dir-se-á, no caso do aborto, que está apenas em causa a rejeição dos julgamentos e das condenações de mulheres pela prática do aborto - e a possibilidade de as que querem abortar o poderem fazer em boas condições, em clínicas do Estado. Só por hipocrisia se pode colocar a questão assim. Todos já perceberam que o que está em causa é uma campanha. O que está em curso é uma desculpabilização do aborto, para não dizer uma promoção ao aborto. Tal como há uma parada do orgulho "gay", os militantes pró-aborto defendem o orgulho em abortar: Quem já não viu mulheres exibindo triunfalmente t-shirts com a frase "Eu abortei"?
Ora, dêem-se as voltas que se derem, toda a gente concorda numa coisa: o aborto, mesmo praticado em clínicas de luxo, é uma coisa má. Que deixa traumas para vida. E que, sendo assim, deve ser evitada a todo o custo. A posição do Estado não pode ser, a de desculpabilizar e facilitar o aborto - tem de ser a oposta. O Estado não deve passar à sociedade a ideia de que se pode abortar à vontade, porque é mais fácil, mais cómoda e deixou de ser crime.
Levada pela ilusão de que a vulgarização do aborto é o futuro é o futuro, e que a suadefesa corresponde a uma posição de esquerda, muita gente encara o tema com ligeireza e deixa-se ir na corrente. Mas eu pergunto: será que a esquerda quer ficar associada a uma cultura da morte? Será que a esquerda, ao defender o aborto, adopção por homossexuais, a liberalização das drogas, a eutanásia, quer ficar ligada ao lado mais obscuro da vida? No ponto em que o mundo ocidental e o país se encontram, com a população a envelhecer de ano para ano e o pessimismo a ganhar terreno, não seria mais normal que a esquerda se batesse pela vida, pelo apoio aos nascimentos e às mulheres sozinhas com filhos, pelo rejuvenescimento da sociedade, pelo optimismo, pela crença no futuro?
Não seria mais normal que a esquerda, em lugar de ajudar as mulheres e os casais que querem abortar, incentivasse aqueles que têm a coragem de decidir ter filhos?"

Estas palavras de José António Saraiva, pessoa pela qual nutro grande respeito intelectual, são accionadas por todos os "combustíveis" que não deveriam estar presentes quando lidamos com estas questões: falta de realismo, moralidade em vez de ética, ódio, exagero e agressão.
A primeira questão essencial ao debate da interrupção voluntária de gravidez (IVG) é se a legalização da mesma a potencia. Sabemos, segundo os dados dos países em que já foi implementada esta medida, que o número de abortos não aumentou, manteve-se.
A que se deverá esta não-evolução, perguntamo-nos.
É simples. Porque a decisão de abortar nunca é uma decisão fácil como alguns o querem fazer crer. É, em regra geral - e essa é que interessa -, uma decisão difícilima que é tomada em última instância.
No entanto, há pessoas que não pensam assim. A ideia trespassada no texto de Saraiva de que muitas das pessoas que abortam, têm orgulho nisso ou o fazem porque não dá trabalho, é de uma tal ignorância que o seu mencionar é perder a razão.
Como sabemos, na sociedade democrática as leis são feitas para responder ao caso/problema geral e não à aberração, logo, evocar a aberração para ter uma réstia de razão, é demonstrar como não há argumentação que sustente o que se está a defender.

Também a ideia peregrina - no sentido de estranha - de que um tratamento hospitalar mais cuidado e transparente irá fomentar a proliferação de abortos é, mais uma vez, invocar a aberração. Quem por desporto irá coleccionar abortos?
Ridicularizemos esta ideia: Nós, os humanos, dentro do que é normal, não acreditamos que o facto de as pessoas serem tratadas no hospital por partirem uma perna, irá fazer proliferar a vontade de que toda a população comece a partir as pernas. Essa nossa crença - de que as pessoas devem ser tratadas quando partem uma perna - decerto não se alterará mesmo que possa eventualmente existir um "maluquinho" que goste de partir as suas próprias pernas.
Se em termos éticos, o caso não é o mesmo, em termos de normalidade das situações, este caso é perfeitamente comparável, dado que ambos são aberrações e na aberração não há ética.

Hoje em dia, há - e não são poucas - formas de abortar. No entanto, todas elas - quer por cocktails de comprimidos, quer por cirurgia em clinicas clandestinas - são mais uma vez aberrações e demonstrações de desrespeito pelo ser humano. Espiritualmente: pela vergonha, mentira e desamparo associados; e fisicamente: por todos os danos causados no corpo, onde o mais gritante será a mais que provável possibilidade de se perder a faculdade de no futuro poder vir a gerar filhos.
Estas noções são absolutamente fundamentais - e reais - e são a verdadeira premissa para se começar a pensar verdadeiramente pró-vida nesta triste questão do aborto. Do outro lado, estão as pessoas que por facilitismo intelectual ou moralismo feudal, inveredam por um autismo em relação à existência de abortos, refugiando-se no ideal óbvio que todos - esquerda e direita - defendem, de que as crianças são algo de positivo.
Uma salva de palmas para eles, descobriram a pólvora.
Falta-lhes apenas dar um passo mais frente e perceber que apesar disso, o aborto continua a existir e de que a única possibilidade de agir pró-vida é dar condições às mães e aos pais que preservem uma vida sã, quer espiritual, quer fisicamente. E que com essa sanidade, se sintam preparados para no futuro serem pais.
Outra utopia ignorante de quem olha para esta questão de um modo autista é das condições normais em que nasce um bébé que não é desejado. Para os defensores dos supostos movimentos Pró-Vida, todos fetos abortados iriam dar lugar a extraordinários seres humanos, exemplares cidadãos. Na realidade, não é assim. Como foi abordado no excelente Freakonomics, a única característica tranversal às cidades americanas cuja criminalidade tem diminuido drásticamente na última década é que todas legalizaram a Interrupção Voluntária de Gravidez há 30 anos. Curiosamente, as taxas começaram a descer vertiginosamente quando esses fetos estariam a atingir a idade normal de enveredarem por uma vida criminosa. Será mais realista acreditar que todas as gravidezes não desejadas, em meios de quasi-mera sobrevivência, vão dar cidadãos exemplares ou vão dar criminosos. O realismo obriga-nos a uma abordagem séria e concreta deste assunto.

Passando à frente, os supostos movimentos Pró-Vida descobriram - mais uma vez - algo de extraordinário. Que são necessárias medidas que fomentem o nascimento de crianças, em suma, medidas que ajudem a criar um ambiente que propície a criação de familias. Mais uma vez, uma salva de palmas para eles. São este tipo de argumentações facilistas, elitistas e irrealistas que tornam mais difícil o verdadeiro combate ao aborto.

E é aí que me inscrevo, dizendo que não é decerto com irrealismo, ódio, moralidade sexual (em detrimento de informação), exagero e aberração que se vão criar essas condições.
Há que fazer o que está certo sem olhar a esquerdas e direitas, ou aberrações humanas, como quem faz um aborto pelo gozo. Há sim que olhar para o caso geral, sem se auto-promover a uma aristocracia moral e vendo o lado mais humano (real) da questão.

É extraordinário como o surrealismo e o erro são característicos quer da verdadeira esquerda, quer da verdadeira direita, posições normalmente inflexíveis, não-evolutivas e não pensantes, que são tão cegas como ignorantes.

Wednesday, October 04, 2006

O palavrão - Parte III

Após receber numerosos apelos de várias instituições religiosas e lares de terceira idade (locais onde estas crónicas são literatura corriqueira) à completa divulgação dos resultados etimológicos desta investigação, o Arranha decidiu-se a prosseguir com a sua reflexão.
Assim sendo, prossigamos então com o menos interessante palavrão, a palavra cona.
Primeiramente, porque será que caralho é um palavrão e cona não é uma palavrona? Fica no ar a energúmena pergunta.
Ora bem, a palavra cona é, como todos sabemos, um sinónimo da palavra vagina, o que por si só não traz nada de especial à língua portuguesa. No entanto, a diferença entre a palavra cona e os restantes palavrões aqui previamente mencionados é que há pouco para além do seu significado óbvio. Essa falta de jocosidade presente na palavra cona, retira-lhe toda a espiritualidade, daí que o seu uso revirta para alguma brejeirice. Se o caralho do avô até pode ser visto como algo engraçado, já a cona da avó é meramente uma agressividade linguística.
Procurei começar com este palavrão (ou palavrona) para demonstrar que no universo dos palavrões também há o trigo e o joio, o que mais uma vez o humaniza. E como sabemos: tudo o que é humano, é interessante. A moralidade impoluta e brejeirice completa são duas faces do mesmo mal, o mal latente quer na repressão, quer na aberração.

Passando agora à mais singular palavra do leque dos palavrões, debrucemo-nos sobre a palavra foder.
Primeiramente, a palavra foder tem como característica particular, o facto se referir no seu sentido lato a uma acção e não a um objecto. Daí que ao invés de se substantificar, conjuga-se. Eu fodo, Tu fodes, Ele fode, etc.
A acção de foder pode ser vista de vários prismas.
Para os mais puristas, foder é que praticar sexo sem amar.
Para os mais aficionados, foder é praticar sexo de forma revigorante e sem complexos.
Para os mais infelizes, o foder é sinónimo de lixar.
Penso que todos nós já usámos e vivemos todos os significados desta bonita palavra.
Muitos vezes, há situações em que vários destes significados se intercruzam numa mesma realidade. Olhemos para o óbvio exemplo da prostituta de rua, criatura fodida directamente - pelo consumidor - e fodida indirectamente - pelas vicissitudes da vida -, o que infelizmente lhe dá apenas a conhecer o lado "mau" do nómio foder.

Deixando de lado a racionalidade inerente a todo este processo de análise social e linguística, ficamos com o que será, sem dúvida, o melhor palavrão de todos, o toque de "Deus" no mundo dos palavrões.
Foda-se!
Repitam comigo: "Foada-se, Foada-se, Foada-se!"
Há lá coisa mais revigorante de se entoar.
Tendo em conta que o profeta Arranha acredita que a presença de " Deus" está apenas no não-explicável, nos sentimentos, então que melhor palavra de "Deus" existirá?
Um foda-se não é o mesmo de que um "que chatice" ou de que um "tás a gozar?" ou ainda, de que um "chiça". Foda-se é como o Amor, a Amizade, etc. Diz-se, não se pensa; Sente-se, não se escolhe.
O foda-se é o que caralho, a puta e a cona gostavam de ser. Mas não são. Uns estão mais longe, outros mais perto. Mas para tamanho grau de humanidade existir, não se pode pensar, forçar ou querer... Surge assim, do nada.

E mais não digo, foda-se!